Relatos de uma professora que
lecionou nos anos1950
Quando os
alunos lhe pediam papel hiénico
para limpar o rabo e roupa usada. Um dos
textos
que lhe
custou a escrever e por isso tem mais
lágrimas do
que palavras.
Estávamos
ainda no século XX, no longínquo
ano de 1955 quando
a vida me deu oportunidade
de cumprir
um dos meus sonhos: ser professora.
Dei comigo
numa escola masculina, ali muito
Próximo do
rio Sabor. Muito longe, da minha casa,
em
Mirandela, eu era ainda uma menina
da cidade
com algum mimo, muitas rosas na alma,
e tinha apenas 19 anos. Nada me fazia pensar
tanta
esperança e tanta alegria me trariam tanta
vida e tantas lágrimas. Os meninos afinal eram
homens com
calos nas mãos, pés descalços e um
pedaço de
pao no bolso das calças remendadas.
As meninas
eram mulheres de tranças feitas ao
domingo de manhã antes da missa, de saias de
cotim,
braços cansados de dar colo aos irmãos
mais novos,
e de rodilha na cabeça para aguentar
o peso dos alguidares de roupa para lavar no
rio
ou dos molhos de erva para alimentar o gado.
As mães eram
mulheres sobretudo boas
eugenéticas
que davam origem a grandes prole ,
gente que trabalhava de sol a sol e até de
noite a
de noite durante o inverno.
Alguns
casais esperavam a sorte de alguém
levar uma
das suas cachopas para a cidade,
“servir” para casa de gente de posses. Seria
menos uma malga de caldo para encher e uns
tostões que
chegavam pelo correio, no final de
cada mês.
Os homens
eram jornaleiros ganhavam 15 escudos
por dia que correspondem hoje a sete centimos do
euro. Os
homens serviam-se das suas mulhers
pela madrugada, mesmo que fosse no aido das
vacas enquanto os filhos dormiam
(quatro em
cada enxerga), cultivavam as leiras
que tinham
ao redor da casa, ou perto do rio e
nos dias de
invernia, entre um jogo de sueca
e duas
malgas de vinho que na venda fiavam
até
receberem a féria, conseguiam dar ao seu
dia mais que
as 24 horas que realmente ele
tinha.
Filhos, eram coisas de mães e quando
corriam pró
torto era o cinto das calças do pai
que “inducava” … e a mãe também “provava
da isca” para não dizer amém com eles…E os
filhos
faziam-se gente.
E era uma
festa quando começavam a ler as
letras
gordas dum velho pedaço de jornal
pendurado no prego onde penduravam os
casacos…
o menino já
lia.. ai que ele é tão fino… se deus
quiser, vai ser um homem e ter uma profissão!
Ai como a
escola e a professora eram coisas
tão
importantes!
A escola que
ia até aos mais remotos lugares,
ao encontro das crianças que afinal até nem
tinham
nascido crianças…eram apenas mais
braços para
trabalhar, mais futuro para os pais
em fim de
vida, mais gente para desbravar os
todos os terrenos, mais vozes para cantar
em tempo de
colheitas.
E os meninos
ensinaram-me a ser gente, a
lutar por
eles, a amanhar os peixes do rio sabor,
a grelhar o sável nas pedras do rio aquecidas
pelas brasas, a rir de pequenas coisas, a
sonhar
com um país
diferente, a saber que ler e
escrever e
pensar não é coisa para ricos
mas para todos.
E por lá
vivi e cresci durante três anos e por
lá fiz amigos e por lá semeei algumas flores
que trazia na alma inquieta de jovem que
julgava conseguir fazer um mundo menos
desigual.
E é deste
povo que tenho saudades. O povo
que lutou
sem armas, que voou sem asas,
que escreveu
páginas de Portugal sem saber
as letras do
seu próprio nome.
Hoje, o povo
navega na internet, sabe a marca
e os preços
dos carros topo de gama, sabe os
nomes de
quem nos saqueia a vida e suga o
sangue, mas
é neles que vai votando enquanto
continua á
espera de um milagre de Fátima,
duns trocos
que os velhos guardaram, do dia
das eleições para ir passear e comer fora, de
saber se o jogador de futebol se zangou com
a gaja que
tinha comprado com os seus milhões,
e é claro de ver um filmezito escaldante para
aquecer a
sua relação que estava há tempos
no
congelador.
As escolas
fecharam-se, os professores foram
quase todos
trocados por gente que vende
aulas aqui,
ali e acolá, os papás são todos
doutores da
mula russa e sabem todas as
técnicas de
educação mas deseducam os
seus génios,
os pequenos /grandes ditadores
que até são
seus filhinhos e o país tornou-se
um fabuloso manicómio onde os finórios são
felizes e os burros comem palha e esperam
pelo dia do
abate.
Sabem que
mais?!
Ainda vejo
as letras enormes escritas no
quadro preto da escola masculina, ao final
da tarde de sábado, por moços de doze e
treze anos
com estes dois pedidos que me
faziam: “Professora vá devagar que a estrada
é ruim, e não se esqueça de trazer na
segunda-feira, papel macio pró rabo e roupa
boa dos seus
sobrinhos prá gente”.
Esta gente
foi a gente com quem me fiz gente.
Hoje, não há
gente… é tudo transgénico .
O povo adormeceu
à sombra do muro da eira
que
construiu mas os senhores do mundo
estão
acordadinhos e atentos,
escarrapachados
nos seus solários
“badalhocamente” ricos e extraordinariamente
felizes porque inventaram máquinas e
reinventaram
novos escravos.
Dizem que já
estamos no século XXI...”