quinta-feira, 16 de junho de 2022

 

Relatos de uma professora que lecionou nos anos1950

 Quando os alunos lhe pediam papel hiénico

 para limpar o rabo e roupa usada. Um dos textos

que lhe custou a  escrever e por isso tem mais

lágrimas do que palavras.
Estávamos ainda no século XX, no longínquo

ano de 1955 quando a vida me deu oportunidade

de cumprir um dos meus sonhos: ser professora.

Dei comigo numa escola masculina, ali muito

Próximo do rio Sabor. Muito longe, da minha casa,

em Mirandela, eu era ainda uma menina

da cidade com algum mimo, muitas rosas na alma,

 e tinha apenas 19 anos. Nada me fazia pensar

tanta esperança e tanta alegria me trariam tanta

 vida e tantas lágrimas. Os meninos afinal eram

homens com calos nas mãos, pés descalços e um

pedaço de pao no bolso das calças remendadas.

As meninas eram mulheres de tranças feitas ao

 domingo de manhã antes da missa, de saias de

cotim, braços cansados de dar colo aos irmãos

mais novos, e de rodilha na cabeça para aguentar

 o peso dos alguidares de roupa para lavar no rio

 ou dos molhos de erva para alimentar o gado.
As mães eram mulheres sobretudo boas

eugenéticas que davam origem a grandes prole ,

 gente que trabalhava de sol a sol e até de noite a

 de noite durante o inverno.

Alguns casais esperavam a sorte de alguém

levar uma das suas cachopas para a cidade,

 “servir” para casa de gente de posses. Seria

 menos uma malga de caldo para encher e uns

tostões que chegavam pelo correio, no final de

cada mês.
Os homens eram jornaleiros ganhavam 15 escudos

 por dia que correspondem hoje a sete centimos do

euro. Os homens serviam-se das suas mulhers

 pela madrugada, mesmo que fosse no aido das

 vacas enquanto os filhos dormiam

(quatro em cada enxerga), cultivavam as leiras

que tinham ao redor da casa, ou perto do rio e

nos dias de invernia, entre um jogo de sueca

e duas malgas de vinho que na venda fiavam

até receberem a féria, conseguiam dar ao seu

dia mais que as 24 horas que realmente ele

tinha. Filhos, eram coisas de mães e quando

corriam pró torto era o cinto das calças do pai

 que “inducava” … e a mãe também “provava

 da isca” para não dizer amém com eles…E os

filhos faziam-se gente.
E era uma festa quando começavam a ler as

letras gordas dum velho pedaço de jornal

 pendurado no prego onde penduravam os

 casacos…

o menino já lia.. ai que ele é tão fino… se deus

 quiser, vai ser um homem e ter uma profissão!
Ai como a escola e a professora eram coisas

tão importantes!
A escola que ia até aos mais remotos lugares,

 ao encontro das crianças que afinal até nem

tinham nascido crianças…eram apenas mais

braços para trabalhar, mais futuro para os pais

em fim de vida, mais gente para desbravar os

 todos os terrenos, mais vozes para cantar

em tempo de colheitas.
E os meninos ensinaram-me a ser gente, a

lutar por eles, a amanhar os peixes do rio sabor,

 a grelhar o sável nas pedras do rio aquecidas

 pelas brasas, a rir de pequenas coisas, a sonhar

com um país diferente, a saber que ler e

escrever e pensar não é coisa para ricos

 mas para todos.
E por lá vivi e cresci durante três anos e por

 lá fiz amigos e por lá semeei algumas flores

 que trazia na alma inquieta de jovem que

 julgava conseguir fazer um mundo menos

desigual.
E é deste povo que tenho saudades. O povo

que lutou sem armas, que voou sem asas,

que escreveu páginas de Portugal sem saber

as letras do seu próprio nome.
Hoje, o povo navega na internet, sabe a marca

e os preços dos carros topo de gama, sabe os

nomes de quem nos saqueia a vida e suga o

sangue, mas é neles que vai votando enquanto

continua á espera de um milagre de Fátima,

duns trocos que os velhos guardaram, do dia

 das eleições para ir passear e comer fora, de

 saber se o jogador de futebol se zangou com

a gaja que tinha comprado com os seus milhões,

 e é claro de ver um filmezito escaldante para

aquecer a sua relação que estava há tempos

no congelador.
As escolas fecharam-se, os professores foram

quase todos trocados por gente que vende

aulas aqui, ali e acolá, os papás são todos

doutores da mula russa e sabem todas as

técnicas de educação mas deseducam os

seus génios, os pequenos /grandes ditadores

que até são seus filhinhos e o país tornou-se

 um fabuloso manicómio onde os finórios são

 felizes e os burros comem palha e esperam

pelo dia do abate.
Sabem que mais?!
Ainda vejo as letras enormes escritas no

 quadro preto da escola masculina, ao final

 da tarde de sábado, por moços de doze e

treze anos com estes dois pedidos que me

 faziam: “Professora vá devagar que a estrada

 é ruim, e não se esqueça de trazer na

 segunda-feira, papel macio pró rabo e roupa

boa dos seus sobrinhos prá gente”.
Esta gente foi a gente com quem me fiz gente.
Hoje, não há gente… é tudo transgénico .
O povo adormeceu à sombra do muro da eira

que construiu mas os senhores do mundo

estão acordadinhos e atentos,

escarrapachados nos seus solários

 “badalhocamente” ricos e extraordinariamente

 felizes porque inventaram máquinas e

reinventaram novos escravos.
Dizem que já estamos no século XXI...”


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