Eram amigos. Formaram um grupo católico para influencia
o poder.
Foram poder. Nunca se defrontaram. Atacaram-se.
Traíram-se.Fizeram as pazes. Um está no topo do mundo.
O outro no topo de Portugal.
Era improvável, mas aconteceu. No
púlpito da Assembleia Geral
das Nações Unidas, o Presidente de uma pequena
república
europeia apelava ao voto num velho amigo que tinha estado no
seu
casamento, na mesa dos noivos, para ser secretário-geral da
ONU.
Não
mencionou o nome, mas toda agente sabia de quem estava
a falar quando disse que
o próximo líder das Nações Unidas
devia guiar-se “pelo exemplo dos valores que Gandhi
e Nelson
Mandela sempre aplicaram na vida”.António Guterres estava
sentado na primeira fila, com a delegação portuguesa,
enquanto Marcelo
Rebelo de Sousa discursava.
Não
era provável que dois companheiros de juventude se
encontrassem
em circunstâncias destas: um como
Presidente da República e outro prestes a chegar ao topo do
mundo.
Foram aos casamentos um do outro;
rezaram juntos; tocaram
campainhas e fugiram; tiveram o mesmo confessor; um foi
primeiro-ministro e o outro nãoconseguiu porque o outro já lá
estava; atacaram-se em público; traíram-se;
fizeram as pazes; um foi Presidente da
República talvez por o
outro não ter sido. Esta é a história cruzada de duas das mentes
mais brilhantes de uma
geração: António Guterres e Marcelo Rebelo de
Sousa.
Dois homens com os destinos
ligados
Nos anos 70, dizem amigos comuns,
corria o mito de que teriam
feito um pacto de que ambos chegariam a
primeiros-ministros.
Foram para além disso.
No fim dos anos 60,
participavam em movimentos católicos cujos
membros tinham sido marcados pela
tragédia das cheias em
Lisboa de 1967.
Marcelo próximo da Juventude Universitária
Católica e
Guterres ativo no Centro de Ação Social Universitária (CASU).
Nesse tempo de fim de regime.
Marcelo Rebelo de Sousa começaria a
relacionar-se com
estudantes do Técnico através de António Barahona,
seu antigo
colega no Liceu Pedro Nunes.
Terá sido
através deste amigo que conheceu António Guterres,
o melhor aluno de
Engenharia Eletrotécnica, que tal como ele
era o melhor estudante de Direito.
Ao longo dos anos, António seria
talvez a pessoa do mundo
político cuja inteligência Marcelo mais respeitava
e admirava.
A amizade passou a intimidade
quando, em 1970, fundaram o
Grupo da Luz com o padre
franciscano Vítor Melícias e outros
estudantes do Técnico como Diogo Lucena (hoje
administrador
da Gulbenkian), estudantes de Economia como Miguel Beleza
ou de Direito como
Carlos Santos Ferreir (da turma de Marcelo
na faculdade),
entre outros.
O grupo aproximava-se politicamente
dos jovens tecnocratas
que Marcello Caetano levara para o Governo, cuja figura
tutelar
era João Salgueiro.
Do ponto de vista religioso, caminhavam
para a esquerda
embalados pela rutura que significava o Concílio
Vaticano II.
Eram católicos pouco
ortodoxos. Aos domingos de manhã,
participavam em eucaristias
domésticas, celebradas
rotativamente em casa de cada um deles.
À cabeceira da mesa, o padre
Vítor Melícias consagrava o pão
e o vinho.
Em redor, estava um futuro ministro
das Finanças e Governador
do Banco de Portugal (Miguel Beleza), um presidente de
bancos
(Carlos Santos Ferreira), um ministro da Cultura (Pedro
Roseta), catedráticos e académicos (Valadares Tavares, Isabel
Matos
Dias).
E ainda um futuro primeiro-ministro e líder do PS, que
teria
como rival um futuro presidente do PSD, ou melhor ainda, um
secretário-geral das Nações Unidas e um Presidente da
República portuguesa.
Na verdade, ficará para sempre por
saber se Marcelo só chegou
a Belém porque António Guterres não concorreu. Em
agosto de
2014, o comentador Rebelo de Sousa dizia na TVI que
Pedro
Passos Coelho deveria escolher Santana Lopes para candidato a
Presidente da
República e que o então alto comissário das
Nações Unidas para os
Refugiados seria o candidato do PS.
“Guterres vai ser [candidato à
Presidência da República].
Eu acho. Só que
não lhe convém estar a queimar em lume
brando durante um ano. Não lhe dá jeito estar a
expor-se
prematuramente”,afirmava o professor Marcelo. O
socialista
estava, afinal, a reservar-se mas era para outros voos. Em
abril de
2015, quando Guterres afastou em definitivo
uma candidatura presidencial,
Marcelo reagiu assim:
Compreendo que seja uma certa
perda para o PS, para a
esquerda em geral, e,porventura,
para uma parte significativa
dos portugueses, que gostaria que ele fosse candidato
presidencial e, porventura, até que fosse
Presidente da
República.”
E se António Guterres se tivesse
mesmo candidatado a
Belém? Marcelo não seria Presidente?
Não teria avançado contra o socialista sabendo
que não seria
um passeio de afetos? O destino político dos
dois andou
sempre ligado.
Rebelo de Sousa também respondeu a esta
pergunta em
janeiro de 2016, já como Presidente eleito: “Sei lá. O
que seria
a vida se tivesse sido uma coisa
diferente do que acabou por
ser?”, respondeu aos jornalistas, admitindo, no entanto,
que
Guterres seria “um candidato muitíssimo forte”. Depois de ter
tomado posse, convidaria o eventual adversário para o
Conselho de
Estado.
Amigos e rivais, nunca disputaram
umas eleições nem fizeram
um debate público na televisão ou no
Parlamento (quando foi
líder do PSD, Marcelo não era deputado). Os eleitores
nunca
viram aquelas duas cabeças em competição direta.