terça-feira, 6 de abril de 2021

 A mulher invulgar que deu o rosto à República


O escultor Simões de Almeida, sempre sob o olhar atento da mãe. 

Chamava-se Hilda Puga e a sua vida foi plena de aventuras.

 O Expresso conta-lhe a história de uma mulher invulgar, que

 sobreviveu a dois cancros, esteve casada dois meses, foi rica 

mas teve tornar-se costureira para sobreviver e morreu no dia

 em que celebrou 101 anos

Até 1970, Hilda Puga andava nos bolsos de todos os portugueses. 

Era dela o rosto das moedas de 5 escudos e de 50 centavos, fruto

 do serviço patriótico que prestou muitos anos antes, quando 

a República foi instaurada, em 1910. Ela, que "até era 

profundamente monárquica, muito católica e reacionária", 

recorda o neto, Nuno Maia, 50 anos, "aceitou o pedido do escultor

 Simões de Almeida por amor ao país." Hilda tinha 16 anos, e

 trabalhava numa camisaria na R. Augusta, na Baixa de Lisboa.

 Estava a fazer uma entrega quando se cruzou com o escultor,

 que lhe achou graça e a convidou para ser sua modelo.

Como Hilda era menor de idade, Simões de Almeida teve de pedir

 autorização à mãe dela, que lhe impôs duas condições: a primeira,

 ela própria teria de estar presente nas sessões - que duraram duas

 horas, durante um mês; e a segunda era que a filha teria de posar 

vestida. Foi esta, aliás, a razão que levou Hilda Puga a só falar

 abertamente deste episódio depois dos 90 anos... É que o busto de

 Simões de Almeida mostra uma mulher de amplo decote, e Hilda 

jura "que só tinha desabotoado um botão da camisa..."

Este poderia ser um episódio de relevo na vida de muita gente, mas

 para Hilda foi apenas um numa vida cheia de aventuras e reviravoltas.

 Nas primeiras está, por exemplo, uma viagem de barco de meses até

 ao Amazonas. Nas reviravoltas da vida estão a perda do pai e a 

passagem de menina rica a costureira.

DE LISBOA PARA BELÉM DO PARÁ

 O pai de Hilda, Tomás Garcia Puga, era um homem abastado,

 proprietário da fábrica de tijolos da praça de Touros do Campo

 Pequeno (Lisboa). Apaixonou-se pela empregada, com quem

 viveu a vida toda e de quem viria a ter cinco filhos – mas o ato 

de amor custou-lhe o corte de relações com a família de origem,

 que nunca aceitou uma união tida como "inferior". Um revés nos

 negócios obrigou Tomás Puga a vender a fábrica. Atraído pelo

 Eldorado da borracha no Novo Mundo, em finais do século XIX, 

ruma a Iquitos, na Amazónia peruana, onde ergue um armazém 

geral. A vida corre bem, tanto que, passados poucos anos, Tomás 

chama a família toda. Numa longa viagem de mais de três meses,

 de "vapor, barco e piroga", Hilda, a mãe e os quatro irmãos rumam 

de Lisboa até Belém do Pará.

Passaram-se três anos felizes na Amazónia, até que Tomás Puga

adoece com beriberi, uma avitaminose provocada por deficiência 

de vitamina B1. O médico dita a sentença: Tomás tem de regressar a

 um clima temperado, sob pena de morrer. A família Puga embarca

 de novo, de regresso a Lisboa – mas o chefe de família não aguenta

 a viagem e morre a bordo, ao largo de Cabo Verde. O funeral é feito

 no mar. À chegada à Lisboa, sem o sustento da família, esperava-os 

a miséria.

Foi a educação dos anos de desafogo financeiro, que proporcionou

 aulas de piano, costura e bordado, que permitiu à mãe e às irmãs 

Puga sobreviverem. Hilda dedicou-se à costura – nunca deixou de 

costurar, a vida toda. "Fê-lo diariamente até aos 96 anos", conta o

 neto - "lençóis, toalhas, fardas de empregada, crochet", e ocupava-se

 muito em leituras. Mas a vida ainda lhe reservaria outros desafios.

Ainda antes dos 30 anos, Hilda teve um primeiro cancro de mama,

 que o pai do médico Gentil Martins retirou. Na mesma altura,

 casou-se, com um jornalista – foi a última das irmãs a fazê-lo. 

Mas também aqui não teve sorte, permanecendo casada escassos 

dois meses. Arremessou um candeeiro à cabeça do marido, e, 

apesar de muito católica, pediu o divórcio em 1932 (ainda antes

 da Concordata ser assinada em Portugal), somando para si mais

 um estigma social: o de mulher divorciada.

Não tornou a casar-se, e nunca teve filhos – mas criou como tal

 uma sobrinha, Emília, que lhe chamaria sempre "mamã". Aos 

60 anos, Hilda teve um cancro na outra mama, e mais tarde, 

retirou outro tumor, na barriga. Cegou ainda de um olho, o 

esquerdo. A tudo isto sobreviveu. Com a costura, sustentava a

 mãe e filha "adotiva". Até que esta se casou, em 1957. Após 3 anos 

de vida em comum com Emília e o marido, optou por ir para um

 lar, aos 77 anos. Estava muito habituada ao seu espaço, e custava-lhe

 ter de prescindir da sua liberdade.

Onze anos mais tarde, sofreu o maior de todos os golpes: Emília

 morria, de cancro de mama. Hilda remeteu-se à clausura total,

 no lar, não saindo de lá durante uma década. Foi preciso nascer

 o primeiro sobrinho neto para tornar a passar o Natal em família.

 Em 1991, parte uma perna e cai à cama. Nessa altura, o seu maior

 problema era "não poder costurar". Dois anos depois, falece, aos

 101 anos. Morria o rosto da República

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