quinta-feira, 9 de novembro de 2017

O rosto da Republica

A mulher invulgar que deu o rosto à República

O escultor Simões de Almeida, sempre sob o olhar atento da mãe. 
Chamava-se Hilda Puga e a sua vida foi plena de aventuras. O Expresso
conta-lhe a história de uma mulher invulgar, que sobreviveu a dois 
cancros, esteve casada dois meses, foi rica mas teve tornar-se costureira 
para sobreviver e morreu no dia em que celebrou 101 anos
Até 1970, Hilda Puga andava nos bolsos de todos os portugueses. Era dela o
 rosto das moedas de 5 escudos e de 50 centavos, fruto do serviço patriótico 
que prestou muitos anos antes, quando a República foi instaurada, em 1910.
Ela, que "até era profundamente monárquica, muito católica e reacionária", 
recorda o neto, Nuno Maia, 50 anos, "aceitou o pedido do escultor Simões 
de Almeida por amor ao país." Hilda tinha 16 anos, e trabalhava numa 
camisaria na R. Augusta, na Baixa de Lisboa. Estava a fazer uma entrega
quando se cruzou com o escultor, que lhe achou graça e a convidou para ser
sua modelo.
Como Hilda era menor de idade, Simões de Almeida teve de pedir 
autorização à mãe dela, que lhe impôs duas condições: a primeira, ela 
própria teria de estar presente nas sessões - que duraram duas horas, 
durante um mês; e a segunda era que a filha teria de posar vestida. Foi 
esta, aliás, a razão que levou Hilda Puga a só falar abertamente deste 
episódio depois dos 90 anos... É que o busto de Simões de Almeida
 mostra uma mulher de amplo decote, e Hilda jura "que,só tinha
 desabotoado um botão da camisa..."
Este poderia ser um episódio de relevo na vida de muita gente, mas 
para Hilda foi apenas um numa vida cheia de aventuras e reviravoltas.
 Nas primeiras está, por exemplo, uma viagem de barco de meses até
 ao Amazonas. Nas reviravoltas da vida estão a perda do pai e a 
passagem de menina rica a costureira.
DE LISBOA PARA BELÉM DO PARÁ
 O pai de Hilda, Tomás Garcia Puga, era um homem abastado, 
proprietário da fábrica de tijolos da praça de Touros do Campo
 Pequeno (Lisboa). Apaixonou-se pela empregada, com quem viveu a
 vida toda e de quem viria a ter cinco filhos 
– mas o ato de amor custou-lhe o corte de relações com a família de
 origem, que nunca aceitou uma união tida como "inferior". Um revés
 nos negócios obrigou Tomás Puga a vender a fábrica. Atraído pelo
 Eldorado da borracha no Novo Mundo, em finais do século XIX, ruma
 a Iquitos, na Amazónia peruana, onde ergue um armazém geral. A vida
 corre bem, tanto que, passados poucos anos,Tomás chama a família
 toda.
 Numa longa viagem de mais de três meses, de"vapor, barco e piroga", 
Hilda, a mãe e os quatro irmãos rumam de Lisboa até Belém do Pará.
Passaram-se três anos felizes na Amazónia, até que Tomás Puga
 adoece com beriberi, uma avitaminose provocada por deficiência de
 vitamina B1. O médico dita a sentença: Tomás tem de regressar a um 
clima temperado, sob pena de morrer. A família Puga embarca de novo, 
de regresso a Lisboa – mas o chefe de família não aguenta a viagem e
 morre a bordo, ao largo de Cabo Verde. O funeral é feito no mar. À
 chegada à Lisboa, sem o sustento da família, esperava-os a miséria.
Foi a educação dos anos de desafogo financeiro, que proporcionou 
aulas de piano, costura e bordado, que permitiu à mãe e às irmãs
 Puga sobreviverem. 
Hilda dedicou-se à costura – nunca deixou de costurar, a vida toda. 
"Fê-lo diariamente até aos 96 anos", conta o neto - "lençóis, toalhas,
fardas de empregada, crochet", e ocupava-se muito em leituras. Mas 
a vida ainda lhe reservaria outros desafios.

Ainda antes dos 30 anos, Hilda teve um primeiro cancro de mama, 

que o pai do médico Gentil Martins retirou. Na mesma altura, casou-se, 
com um jornalista – foi a última das irmãs a fazê-lo. Mas também aqui 
não teve sorte, permanecendo casada escassos dois meses. Arremessou 
um candeeiro à cabeça do marido, e, apesar de muito católica, pediu o
 divórcio em 1932(ainda antes da Concordata ser assinada em Portugal),
 somando para si mais um estigma social: o de mulher divorciada.
Não tornou a casar-se, e nunca teve filhos – mas criou como tal uma
 sobrinha, Emília, que lhe chamaria sempre "mamã". Aos 60 anos, 
Hilda teve um cancro na outra mama, e mais tarde, retirou outro 
tumor, na 
barriga. 
Cegou ainda de um olho, o esquerdo. A tudo isto sobreviveu. Com a
 costura, sustentava a mãe e filha "adotiva". Até que esta se casou, em
 1957. Após 3 anos de vida em comum com Emília e o marido, optou
por ir para um lar, aos 77 anos. Estava muito habituada ao seu espaço, e
 custava-lhe ter de prescindir da sua liberdade.
Onze anos mais tarde, sofreu o maior de todos os golpes: Emília morria, 
de cancro de mama. Hilda remeteu-se à clausura total, no lar, não saindo
 de lá durante uma década. Foi preciso nascer o primeiro sobrinho neto
para tornar a passar o Natal em família. Em 1991, parte uma perna e
 cai à cama.
 Nessa altura, o seu maior problema era "não poder costurar". Dois anos 
depois, falece, aos 101 anos. Morria o rosto da República


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